sexta-feira, março 17, 2006

Realidades

“As pessoas cá são diferentes. No outro dia, no metro, estava um velhote de canadianas e não se conseguia levantar. Eu e um amigo fomos lá, ajudámos o senhor a levantar-se a e fomos amparando-o até ao metro. Não havia lugares e eu tive de pedir por favor para alguém se levantar, porque mesmo vendo o velhote e mesmo com os bancos para pessoas idosas, ninguém se levantou. Levámo-lo ao autocarro no Campo Grande, e ele desejou-nos toda a saúde e sorte do mundo. Nós fomos educados assim percebes? Para nós as pessoas idosas são sábias, e devemos todo o conhecimento a elas. Respeitamo-las, honramo-las e cuidamos delas.”

(...)

“A televisão fala uma verdade muito facciosa porque o que escandaliza são os gritos histéricos e as bandeiras queimadas. Discussões racionais não vendem e, é cheia de fanatismo que vendem a imagem do meu povo ao mundo.”

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“Há uma senhora holandesa que desde sempre vai passar férias a minha cidade natal. Ela gosta mesmo da Palestina. Ama a terra e as suas gentes e sempre foi tratada bem. Já ficou em minha casa tantas vezes, assim como espanhóis, italianos que pedem para pernoitar. Com amabilidade os recebemos e damos estadia sempre sem pedir nada em troca. Aquela tal senhora já me disse que quando se reformar vai viver para lá, e eu perguntei porquê. Ela respondeu-me que adorava as pessoas e o seu calor e já lá levou os filhos e tudo.”

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“Todos os meus amigos que lá estão já acabaram o curso e estão agora desempregados. O desemprego de licenciados na Palestina atinge os 75%. Só quem é filho de um dos muitos corruptos é que se safa. Que objectivos de vida pode ter um jovem de 25 anos que passa os dias sem fazer nada?”

(...)

“A minha infância foi muito diferente da tua sabes. Tu se calhar nunca viste uma pessoa morta, eu vi um homem levar um tiro na cabeça à minha frente quando tinha 5 anos. Durante meses não consegui dormir uma noite seguida com os pesadelos. Depois quando os raids israelitas se intensificaram tinha gás lacrimogéneo em casa de duas em duas semanas. Quando tinha 8 anos levei um tiro na perna. Tenho um sobrinho de 9 anos e, uns meses antes de vir para Portugal, houve um grande raid na minha terra. Cheguei a casa a fugir dos barulhos e do pânico e a minha irmã chorava porque não o encontrava. Eu disse que o ia procurar e ela respondeu “não saias de casa que podes morrer”. Mas morrer na rua ou em casa não faz lá grande diferença e saí para procurá-lo. Corri algumas ruas e fui ao posto médico. Encontrei-o lá sentado à porta a olhar para a enxurrada de corpos e pessoas mutiladas que chegavam. Ele estava petrificado a olhar para uma cara completamente ensanguentada e perguntou-me se eu estava a ver aquilo. “Claro que estou a ver” – disse eu – “Mas o que estás tu aqui a fazer?”. Ele tinha fugido para ali, e rapidamente o levei pelas ruas que achava mais seguras para casa. “Tantos corpos, tio. Foram os judeus, tio. Vamos matá-los, tio, vamos.” – Disse ele durante a viagem toda de regresso. As pessoas admiram-se e questionam as razões de tantos jovens que se explodem, mas a verdade é que por dentro, já explodimos há muito tempo.”


Excertos de uma longa conversa que tive com um amigo meu, uma noite destas.

2 Comments:

Blogger Guronsan said...

Ódio gera ódio, e o ódio que existe entre israelitas e palestinianos está tão enraizado nas próprias culturas de ambos os povos que já é impossível dissociarem-se dele.

Bom texto.

3/21/2006 12:03:00 da tarde

 
Blogger Unknown said...

gosto do "confronto" de culturas. Gosto da conversa que tiveram

3/25/2006 01:46:00 da tarde

 

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